terça-feira, 22 de setembro de 2015

Almas Heroicas





José Siebra de Oliveira, outubro de 1964. Publicado no Periódico da AABB Crato, Ano IX, número 20.

No extenso e plano baixio, entre montanhas adjacentes, os cachos dourados do arrozal valsavam ao vento fresco da manhã.

De faquinhas afiadas, um adjunto de trinta carrascos ia degolando, sem piedade, as lindas dançarinas que, com suas verdes folhas farfalhantes, executavam a mais bela sonata.

Recostado a uma troncuda e frondosa cajazeira, o proprietário, sr. Jorge Lima, observava o trabalho, enlevado pelo pensamento no lucro.

Um par de alegres e inocentes crianças corria entre as touceiras decepadas, enriquecendo, com a mais expressiva tonalidade, tão empolgante quadro.

Em seus revoluteados, exibiam suas cabecinhas apenas, contrastando-se os ebâneos cabelos de Marquinho com os louros de Rosita.

Parente da genitora da amiguinha, morava ali com seu pai, graças à bondade da esposa de Jorge Lima.

Por trás da árvore amiga, a meiga voz de Rosita quebrou o êxtase do pai que não via, com bons olhos, aquela amizade, cada dia mais consolidada entre ela e seu paupérrimo amigo.

"Marquinho! Olha aqueles pintassilgos tecendo o seu ninho. Como é linda a vida dos pássaros! Isto parece o paraíso terrestre. Faltam-me maçãs para te dar."

O sr. Jorge não podia compreender a intenção pura da filha. Sua maldade avolumou-se e, com brusca atitude, ordenou que o menino se retirasse, exigindo, em seguida, a saída de seu pai da propriedade.

Dias depois, da soleira da porta de sua casa, ela viu a pobre família desaparecer na curva do caminho.

Marquinho voltou a cabeça em despedida, levando a alma cheia daquela terra, dos seus campos, dos passarinhos, das noites de lua e, mais que tudo, da menina que o cativara.

Rosita chorou sozinha.

Três anos passaram-se.
Do município de Várzea-Alegre, onde residiam, Rosita e seus genitores dirigiram-se ao Crato, em viagem de passeio.

Era um dia de domingo.

Saía ela da exibição matinal de um grande circo.

Fora, sentado em tosco banquinho, um pobre cego pedia esmolas. Ao seu lado, um garotinho de dez anos olhava, com santa inveja, a meninada feliz que se comprimia na saída do circo, derramando-se pela rua abaixo.

"Mamãe, dá-me vinte cruzeiros para aquele ceguinho."

A mulher atendeu à filha.

Estendendo a mãozinha, os olhos de Rosita cruzaram com os olhinhos vivos do pequeno.

"Marquinho!"

"Rosita!"

Duas palavras apenas... um só instante...

A mão de Jorge Lima segurou a de Rosita e sumiram-se na multidão. Ela olhou para trás cheia de compaixão. Sua mãe, somente, sentiu e entendeu aquela cena.

Foram-se os dias, os meses e os anos.

Morreu o pai de Rosita e também o de Marquinho.

O silêncio se fez, cada ano, mais profundo entre aquelas almas distantes.

Onde estará Rosita?

Onde andará Marquinho?

Eram interrogações feitas aos céus, ao vento, aos pássaros.

Seus pensamentos e olhares encontravam-se nas estrelas, abraçavam-se nas dobras das nuvens e bailavam nos espaços.

Do pai Rosita herdara grande fortuna. Filha única, nova e cheia de encantos, dedicou-se à educação das crianças, indo, em companhia de sua mãe, para Fortaleza, onde instalou um colégio.

Em seus passeios, nas igrejas, nos cinemas, nos ônibus, trens e aviões, seus olhos, inconformados, buscavam, em vão, os olhos de Marcos.

Como seria possível encontrar, evoluído e em tais circunstâncias, o filho de um indigente?

Dele jamais falara sua mãe.

Certa manhã, uma de suas internas, menina pobre, fraturou o crânio e a medicina da Capital se declarou impotente para salvá-la.

Devidamente medicada para resistir à viagem, Rosita voou, a jato, para São Paulo, onde lhe foi indicado um moderníssimo hospital infantil.

O proprietário, renomado cirurgião que vinha adquirindo fama em todo o sul do Brasil, havia estudado num colégio de Salvador, revelando-se, desde cedo, portador de esmerada educação e inteligência invulgar. Conquistou ele bolsas de estudo, fazendo cursos de aperfeiçoamento na Alemanha, nos Estados Unidos e, finalmente, na Suíça.

Consagrou-se, de corpo e alma, ao tratamento dos pequenos, ricos e pobres. Era assistido por dedicadas enfermeiras e abalizado corpo médico.

Tornara-se milionário muitas vezes, porém sua riqueza era mais das crianças que dele próprio.

O avião aterrou.

Rosita, ainda que preocupada com a menina, não afastava os olhos dos transeuntes apressados, no desejo ardente de descobrir alguém.

O automóvel chegou ao hospital e a criança foi levada, em estado de coma, para a sala de operações.

Era urgente a intervenção.

O médico estava de rosto vendado e somente seus olhos negros brilhavam nas duas pequenas aberturas.

Rosita esquecera tudo e agora fitava unicamente a criança.

O médico olhou Rosita e baixou a vista. Ali estava uma vida em perigo. Apenas perguntou: É sua filha? A senhora é casada?

"Não!" Foi a resposta de Rosita.

Os aparelhos foram-lhe sendo servidos à proporção que continuava nos trabalhos de operação.

Depois...

"Resta alguma esperança", declarou o cirurgião. Levem-na para o quarto.

A pequena foi conduzida e posta na cama. Todos se retiraram.

A menina estremeceu. A porta estava fechada.

Rosita abriu-a com precipitação, chocando-se com o médico que, mais precipitado ainda, empurrou Rosita para dentro do quarto.

"Marcos!"

"Rosita!"

Havia procurado Marcos em todas as circunstâncias e em todos os lugares. Nunca o esperara ali. Esquecera-se até de indagar o nome do cirurgião.

Realmente, estava ali o seu querido Marcos que, sem que ele nem Rosita soubessem, tivera os estudos custeados, em Salvador, pela viúva do sr. Jorge Lima.

Um abraço e um beijo, que foram a soma de todos os não realizados naquela longa ausência, abriram a porta de um futuro de felicidades, dedicado ao lar e à vida dos seus pequenos semelhantes.

Enquanto se abraçavam, a criancinha, no leito, abriu os olhos e sorriu.

Crato (CE), outubro de 1964

J. Siebra.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Pedrinho e o Galo de Ouro







José Siebra de Oliveira (publicado em dezembro de 1964 no Num. 22, Ano IX do Periódico da AABB Crato)

Chegara o pequeno do colégio onde cursava a primeira série ginasial. Havia-se matriculado naquele estabelecimento graças à interferência do Dr. Fernando Carlos, que, com imensa admiração, acompanhava o desenvolvimento do menino. Ambos assemelhavam-se pelos arroubos dos idênticos sentimentos em suas almas de filósofos. Por sua brilhante inteligência, conquistara Pedrinho, em exame de seleção, uma bolsa de estudos e revelava-se, então, arguto, perspicaz, genial e de grande fidalguia de coração.

Sentara-se à beira da tosca cama onde sua mãe, desde uns cinco anos, se encontrava paralítica. Seus olhares cruzaram-se, como sempre, em silenciosa expressão de profunda angústia pela carência de uma vida, pelo menos, sem penúria.

Aproximava-se já do seu décimo aniversário. Jamais fruíra a felicidade do amor paterno. Ainda no segundo mês de sua existência, o pai falecera vitimado por violenta moléstia, consequência de trabalhos excessivos e subnutrição.

Sua genitora, excelsamente prendada, inspirava-lhe espírito de luta e heroísmo. Mostrava-lhe a celeridade da existência, nesta curta reta pontilhada de instantes a se consumirem entre o passado e o futuro, entre o berço e o túmulo. "Meu filho", dizia ela, "a vida deve ser vivida, em cada um dos seus segundos, em função de Deus e dos nossos semelhantes." Antes que sua mãe o dissesse, estes pensamentos já eram firmes e florescentes no cérebro de Pedrinho.

Viviam, inclusive uma tia do pequeno, a qual com eles moravam, da escassa generosidade de alguns de seus parentes abastados, que os enxergavam ainda, pelo fraco impulso de resíduos sentimentais de caridade de uma débil fé, bruxuleantes naqueles espíritos materializados. Também não faltava àquela pobre família o conforto da presença e dos auxílios do Dr. Fernando.

A criança manifestava sempre imensa mágoa por não possuir, como outros meninos, a companhia de um pai bondoso e de uma mãe sadia e forte.

A esmerada educação daquela mulher, transmitida, com sabedoria, ao filho, impedira-o de resvalar nas ladeiras da malandragem. Tornava-se cada dia mais estudioso e mais solícito. Dúvidas e objeções afloravam-lhe, constantemente, à alma, de tudo desejando e procurando a razão de ser. Suas curiosas inquirições embaraçavam mestres e amigos.

Levantando-se da cama, Pedrinho comunicou o seu propósito de, naquela véspera de Natal, olhar o bonito pinheiro natural, que se encontrava, enriquecido de presentes, no jardim da residência de seu parente rico, Sr. Paulo Antônio.

"Mamãe, o bobo Papai Noel, que alimenta a parvalhice dos meninos ricos, não passará em casa de pobres. É ele essencialmente capitalista. Suas dádivas não serão para mim. Vou, entretanto, observar aquelas comemorações, na casa de Paulo Antônio, as quais poderão ser a caricatura do nascimento de outro qualquer, menos a expressão do de Cristo."

Pedrinho tinha razão. Atualmente, as festas do Natal, em muitos lares, são apenas manifestações de um modo existencialista de vida.

As horas passaram-se...

Além da Serra do Araripe, o sol já mergulhava para a outra banda da terra, ferindo, com suas espadas de luz, o peito desnudo do céu e o sangue dos espaços derramava-se, sobre a cidade, em pulverizações de ouro e pérolas.

Pedrinho dirigiu-se para aquela casa, magnificamente ornamentada, no bairro elegante do Pimenta. Andou muito por aquele bonito subúrbio do Crato. Sentou-se, por momentos, nos degraus da entrada do Crato Tênis Clube.

Já era noite... as lâmpadas, em policromia, espargiam sua variada luz sobre as folhas das árvores.

Pedrinho aproximou-se da casa do Sr. Paulo Antônio e recostou-se ao muro do jardim. Não fora convidado.

Bolinhas matizadas, pendentes dos galhos do pinheiro, atraíam, com seus revérberos, os olhares curiosos dos presentes.

Um frondoso cedro do Líbano, uma figueira italiana, copudas e floridas acácias, balançavam-se com o vento fresco da noite.

O jardim estava risonho, cheio de verbenas e margaridas.

Isto, dizia Pedrinho, parece mais com o palácio de Herodes do que com a gruta de Belém.

Na rua, parara mais um automóvel. Era o aero-willys do Dr. Fernando, amigo daquela família. Ao abrir das portas, uma torrente de oito crianças fluíra daquele carro, enchendo aquela casa de vida e alegria. Eram os filhos do renomado médico.

Nenhuma atenção fora dispensada, até então, ao Pedrinho. Paulo Antônio, uma vez, fitara-o com desdém e, como sempre, quando Pedrinho por lá aparecia, nem lhe indagara pela mãe, sua parenta próxima.

O Dr. Fernando, ao passar, abraçou o Pedrinho e foi sentar-se na biblioteca do anfitrião, onde começou a folhear um livro de Jean Paul Sartre, escritor a quem a França dera o prêmio Nobel e o qual ele considerava como um grande gênio que, por desfeito (sic) de base, perdeu o verdadeiro sentido da existência.

Dr. Fernando contava pensando... Passaram Descartes e Francis Bacon... Passaram Kant e Hegel... Passaram Kierkegaard e Heidegger... Também passará Jean Paul Sartre. Jamais passará, todavia, a estrela de Belém.

Chegava a hora dos comes e bebes... todos foram arrastados pelo Sr. Paulo Antônio para o interior da casa.

Padrinho, obscuro como sempre, ficara sozinho no jardim. Observava aquelas fulgurações feéricas e, sobretudo, aquele galo de ouro maciço, com bico de platina e olhos de brilhantes, preso em um dos galhos do pinheiro. Aquele galinho, de grande valor intrínseco e estimativo, fora um dos dezenove fabricados quando era imperador D. Pedro II e oferecidos, por razões ainda ignoradas, a todas as províncias do país. Viera, ignora-se o motivo, do Grão Pará, no tempo do Brasil império, para as mãos dos ascendentes daquela família. Ali representava o galo de Belém.

Ausente o Menino Deus... nada de anjos... nem presépio... nem estrela... nem José nem Maria... nem reis ou pastores do oriente... somente uma árvore... um galo de ouro... enfeites e presentes pendentes dos galhos do pinheiro... e uma miniatura de Papai Noel no tronco da árvore...

Lá dentro, o bar e a geladeira estavam empazinados de cervejas, uísques, guaranás, etc... etc... e a indispensável coca-cola...
            A preocupação do Sr. Paulo Antônio pelos convidados, bem como a de sua esposa, fizeram-lhe esquecer o galo de ouro. Aquela obra-prima ficara naquela árvore, como a maçã do paraíso, num tentador convite ao crime do roubo.

Túlio, da mesma idade de Pedrinho, saiu correndo do interior da casa e gritou para o pequeno: "Toma este pedaço de bolo!... vem olhar de perto o galinho!..." Pedrinho começou a voltear aquela bonita árvore de Natal. Algum tempo depois... Túlio havia entrado e Pedrinho encontrava-se na calçada.

O Dr. Fernando ainda lia na biblioteca, de onde olhava, de soslaio, aquele menino. Crianças felizes e adultos alcoolizados precipitaram-se do interior da casa, em grande alvoroço.

No meio deles vinha o Sr. Paulo Antônio, cujos gritos não se fizeram esperar, ao perceber que havia desaparecido o galo de ouro. "Roubaram o galo!... Polícia!... Polícia!..." Logo correu o Sr. Paulo Antônio, agarrando o Pedrinho, que ainda se encontrava na calçada. "Foi você!... Foi você!... Onde o escondeu, seu ladrãozinho?... Vamos!..."

Não obstante os esforços do Dr. Fernando, por exigência do Sr. Paulo Antônio, um soldado conduziu Pedrinho à presença do juiz de menores, que sem a menor piedade, mandou que ele ficasse detido no pátio interno da Penitenciária, até que fosse o assunto esclarecido.

Deitado no chão, sentindo o mau cheiro das celas, olhando o brilho das estrelas, entendendo a hipocrisia dos homens, ele pensava... "Estes ricos orgulhosos... avarentos... jamais entrarão no reino dos céus... pobres ricos..."

Os filhos do Dr. Fernando já se encontravam no automóvel. Ele, entretanto, permanecia ainda na calçada, à espera de alguém. Túlio passava ligeiro. O médico segurou-o pelo braço. "Tulinho, venha cá. Não acredito que o Pedrinho tenha roubado o galinho de ouro. Reputo ser você um menino bom e educado e certamente não o pensará também."

Os olhos de Túlio inclinaram-se para o chão. "Fui eu, Dr. Fernando, quem escondeu o galo de ouro. Por obséquio, não o diga a papai." Tirando do bolso a preciosa joia, entregou-a ao Dr. Fernando, que a recolocou no galho da árvore.

"Não temas, nada direi. A tua primeira ação foi de um covarde, porém de herói foi a tua segunda atitude."

"Paulo Antônio, o galo apareceu", gritava, alegre, o Dr. Fernando. Vou soltar o Pedrinho.

"Não se incomode com o pequeno. Amanhã providenciarei para que ele volte para casa." Estas palavras, pronunciadas com desinteresse pelo Sr. Paulo Antônio, disseram bem do seu profundo egoísmo.

"Não, Sr. Paulo! Uma injustiça não se prolonga! Vou soltá-lo imediatamente", disse irritado o Dr. Fernando.

Ao entrar no seu aero-willys, brotaram, dos seus lábios, aquelas mesmas palavras de Pedrinho: "Isto mais parece o palácio de Herodes do que a gruta de Belém. Os egoístas... os existencialistas vivem para si." Rápido, dirigiu-se para a penitenciária, onde o menino se encontrava deitado nas lajes, fitando o céu estrelado.

"Vamos, Pedrinho! Eu sabia que você jamais seria um ladrão!"

Os filhos do Dr. Fernando observavam todas aquelas cenas com muita curiosidade.

Quando soaram as doze badaladas da meia-noite, aquelas crianças já dormiam... e Cristo passava, pelas casas da cidade, em espírito e em verdade.

Levantando-se, às seis horas do dia 25 de dezembro, Pedrinho dirigiu-se para o quarto de sua mãe, onde encontrou uma linda bicicleta, presente de um dos filhos do Dr. Fernando, com o seguinte oferecimento:

"Ao Pedrinho, por ordem do papai, oferece o seu admirador, JOSÉ ROLANDO"  

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O Homem que Não Salvou o Brasil







José Siebra de Oliveira, novembro de 1964 (publicado no periódico da AABB do Crato, ano IX, número 21, Crato –CE)

Era uma destas manhãs, em que se gosta, mais do que nas outras, de viver... clara... alegre... festiva... manhã de setembro de 1920.
Os céus, as árvores, os pássaros, o povo, uniam-se todos na exaltação do "dia da independência".

Muita gente na praça da Sé...
Estudantes, jovens e crianças, vibravam. Cada coração era um tambor e reboavam no espírito de todos, as clarinadas do glorioso exército.

Sentiam-se n'alma e enxergavam-se na bandeira nacional, que se hasteava, aquele Brasil selvagem de florestas e rios indevassáveis, o Brasil dos índios, de Cabral, de Anchieta, aquele Brasil de Felipe Camarão e Henrique Dias, o Brasil de Tamandaré e Caxias, de Patrocínio e Castro Alves, o Brasil de Tiradentes, dos bandeirantes, dos garimpeiros, o Brasil Caboclo, forte e invencível, o Brasil molambudo e faminto do nordeste, o Brasil brasileiro.

 Era o Brasil que, no pavilhão sagrado, desfraldado e drapejado ao vento, subia lentamente aos acordes do hino nacional e ao estrondar dos foguetes, na haste fixa à parede do edifício da Prefeitura Municipal.   

Em todo o território nacional, os brasileiros erguiam, naquele momento, os olhos e os corações para o querido pendão da esperança.

É sempre magnífico o 7 de setembro e aquele o era mais que todos os outros.

Naquele instante, em Crato, nascia mais um brasileiro. Toda a natureza o saudava porque ele era incomum.

Em uma das mais belas casas da cidade, assistida por renomada obstetra, dona Marieta, mulher conhecida e comentada na sociedade de Crato, Juazeiro e Barbalha, dava à luz um bonito e rosado menino. Chamou-o Moacir. Cresceu, revelando-se, dia a dia, em saúde, bondade, poder e sabedoria.

Suas qualidades eram de alguém, até então, inexistente.

Encheu o lar. Dominou a mãe, que se extasiava em contemplá-lo, os irmãos, os domésticos. Cativou, sobretudo, o pai, que se sentia super-homem em ter dado ao mundo alguém invulgar, tão útil à cidade, ao Ceará, a todos brasileiros.

Encheu a cidade... Seus colegas, seus amigos, o povo, pobres e ricos, curvavam-se superados e seguiam-nos admirados.

Era magnética a sua presença. Atraía... Absorvia... Empolgava... 

As moças perseguiam-no... mas somente uma, a sua eleita, fascinava-o.

Moacir tornou-se cidadão.

Seus cursos foram a expressão de um gênio. Ele os fez, como cometa, ligeiros e brilhantes.

Havia-se doutorado em ciências políticas, sociais e econômicas.

Por exigência dos estudante, dos operários e do povo, candidatou-se a deputado estadual. Foi eleito e cumpriu o seu destino, correspondendo aos anseios de todos, sacrificando seus interesses particulares pelo bem comum, envolvendo-se em ardorosos debates, até mesmo contra elementos do seu partido, em defesa da justiça e da honestidade.

Sua fama difundiu-se e sua presença fez-se exigida na Câmara Federal.

As massas aclamavam-no.

A prepotência camuflada, mas comprovada dos grupos econômicos e a força dos partidos da esquerda sem Deus, não o abatiam nem o convenciam. Ele olhava sempre para o centro onde fica o povo, este pobre povo sofredor. Era o povo que ele amava e defendia. 
Pobre com relação aos ricos do sul, de convicção espiritualista inabalável, nacionalista no verdadeiro sentido da palavra, sem qualquer prejuízo do conceito de fraternidade universal, democrata sincero, defensor das tradições cristãs do Brasil, apóstolo do amor aos seus semelhantes, um dia, por estrondosa manifestação da vontade do povo, foi eleito Presidente da República. 
A Praça dos TRÊS PODERES estava repleta de gente procedente de todos os quadrantes do Brasil e do estrangeiro no dia de sua posse.
Vieram os atos... nomeações de ministros... mensagens ao congresso... decretos... e tudo foi modificando-se no Brasil... Os sistemas de impostos... de fiscalização... de remessas de lucros para o exterior...
Realizaram-se as reformas de base... agrária... bancária... etc...
Nacionalizaram-se as empresas de água e energia... petróleo... transportes...
Multiplicaram-se os colégios e faculdades, fixando-lhes normas especiais. 
Novas estradas rasgaram o Brasil em todas as direções.
Possantes navios encheram os mares e poderosas aeronaves os espaços.
O gigante, que dormia em berço esplêndido, ergueu-se para a luta e para o progresso, dentro da mais perfeita ordem. Todos os brasileiros conheceram a paz e a ventura. 
Não obstante o seu valor, Moacir continuou simples, relativamente pobre, amigo de todos.
Com a reforma da constituição foi-lhe possível sua reeleição por três vezes consecutivas.
Alegrava-o ver o seu querido Brasil subindo no conceito das nações, revigorando-se, destacando-se com sua personalidade própria, provando ao mundo que é possível construir uma pátria grande, poderosa e feliz, sem o socialismo ateu ou o capitalismo materialista absorvente, uma pátria independente de trustes e de nações estrangeiras, uma pátria célula viva no conjunto dos povos. 
A cratense, sua companheira, que foi a primeira dama do Brasil, tornou-se, por sua generosidade, o ídolo das multidões.

Que absurdo!... dirá o leitor... O HOMEM QUE NÃO SALVOU O BRASIl!... Aqui a razão do título...
Era o dia 28 de dezembro de 1919.
Para o nascimento de Moacir teriam de ser decorridos 253 dias.
Houve, então, uma transformação que aquela vida não pode compreender naquele mundo de trevas. O seu destino havia sido modificado. Com ele o de milhões de brasileiros... Fora o golpe de estado mais cruel...
Desintegraram-se os elementos do seu organismo e o seu espírito, desprendido, voou para as regiões transcendentais.
Sua mãe, perversa e criminosa, assassinara o próprio filho, o quinto fruto das suas entranhas, cancelando a trajetória que iria salvar o Brasil, prejudicando também a vida daquela que seria esposa do Presidente da República. 
Não foi, entretanto, o caso de Moacir o primeiro nem o último.
Quantos astros... quantas estrelas humanas apagam-se antes de atingirem a linha leste do horizonte, desintegradas pela explosão atômica, realizada por aqueles mesmos que lhes deram a existência!...

Não desanimemos todavia. Talvez o Brasil ainda seja a primeira entre as nações do mundo. Que Deus não tenha consentido que os salvadores do Brasil tenham nascido mortos!

Crato (Ce), novembro de 1964