sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Casca e Miolo III - Entrevista com um Delegado



José Siebra de Oliveira, janeiro de 1959 (publicado no periódico da AABB do Crato)

            Baixemos no escalvado daquele pequeno morro.
            Os belos caminhos estreitos, carroçáveis apenas, apresentam-se cheios de poços de um lamacento vermelho, sinal de que a noite foi chuvosa na região.
Os marmeleiros molhados exalam uma agradável fragrância de inverno.
As águas barrentas das chuvas, mansas e volumosas, serpenteiam na pequena planície, para logo desaparecerem em gargantas tortuosas de terreno bastante acidentado.
Visitemos esta cidade. Cidade simples e bela, em meio de vetusto coqueiral.
– Garoto, por obséquio, onde é a delegacia?
– Ali na praça, mas o delegado está metido em casas de maribondos... Mataram, esta noite, o chefe político do N.P.T., e os filhos da candinha dizem que os bandidos falaram com ele, antes do crime.
– Foram presos?
– Nem rasto, senhores!... Estes cabras, no assunto, são mais seguros que Pelé na bola. Escolheram noite d'água. Chuva apaga tudo e mata sede, sem incomodar ninguém. O partido contrário está agindo, mas de baixo, aqui e na capital. Os senhores compreendem. Nesta região, estes bandidos só não têm a nomeação de funcionários públicos... mas sempre trabalham para os que estão em cima. Quando a situação mudar, mudarão também os personagens do drama.
– Garoto, outro obséquio: aqui há jogo?
– Senhores, apontem-me uma cidade do Brasil onde não haja jogo, e eu serei capaz de dar um prêmio ao governo. A lei proíbe, mas o delegado é o maior desrespeitador da lei neste sentido. Aqui, o peito é dele, na capital, do Chefe de Polícia. Não sabem os senhores que delegacia e chefatura são das coisas mais disputadas no Brasil, entre os políticos que conquistam o poder?
– É, moço... infelizmente, é verdade... quem mais desrespeita as leis são os responsáveis pela sua execução. O nosso delegado até faz justiça. Prende criminosos de todos os partidos e castiga ladrões e embriagados. Mas nestes crimes de alta classe, como se diz, o povo fica batendo a língua.
– É, garoto, mas há muitos delegados bons. Vamos, mostre-nos a casa dele.
– É ali.
Dois soldados passeiam, na calçada, com fuzis na mão, e outros dois estão sentados no interior da sala.
Tudo confirma a veracidade dos acontecimentos narrados pelo pequeno.
– Bom dia, moços!
– Quem são os senhores?
– Repórteres.
– Este instrumento aí... os senhores tenham a bondade de me entregar. Aqui, por ora, não é permitido o uso de instrumentos desconhecidos. Procurem na Chefatura de Polícia do Estado. E cuidado!... repórteres nesta região devem calar o bico.
Quem nos dirige estas palavras? Ignoramos. Não está fardado. É algum elemento de prestígio.
– Com quem desejavam os senhores falar?
– Com o delegado, mas não é necessário chamá-lo.
– É... ele não pode receber visitas hoje. Desculpem e depois procurem, na capital, o seu objeto. Vieram a cavalo?
– Sim... ficaram numa roça, à pequena distância. 
Apressemo-nos, antes que prendam, também, o nosso avião. O ruim é que nem umas fotografias podemos conseguir.
E agora, voando nos céus livres do Brasil, podemos afirmar quanto é escravo e ignorante este povo simples do interior. Que Deus o proteja, e o salvem os homens de boa vontade.

NOTA: – Qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido uma inevitável coincidência.

Apresentação e proposta - José Siebra de Oliveira


 Recentemente, ao ler um texto publicado por meu tio Fifico no facebook, descobri que existia um antigo maço de papéis com alguns artigos curtos escritos por meu avô paterno - José Siebra de Oliveira. 

 Ele foi um homem público de alguma notoriedade no Crato dos anos cinquenta e sessenta, mas, talvez por ser um homem de personalidade discreta, só se dedicou às letras casualmente (ao contrário, por exemplo, de meus antepassados maternos, que tiveram uma atuação regular na imprensa caririense).


Zé Siebra faleceu quinze dias após meu nascimento. Não tenho memória dele, mas ainda assim posso dizer que o conheci - pelas conversas que tive a seu respeito com meu pai. Sei, por exemplo, que ele era um homem de fortes inclinações intelectuais, que se interessava por filosofia e que, por ter sido seminarista, tinha um pendor pela teologia e pela escolástica. Herdei dele uma edição em cinco volumes do "Dom Quixote" - um dos livros que li com mais prazer em minha vida (infelizmente, o restante de sua biblioteca se perdeu, depois que minha avó a deixou aos cuidados de um vigarista que havia prometido vendê-la a um bom preço...).

Ele era um homem religioso, com personalidade severa e convicções morais fortes, o que o levava muitas vezes a ser rigoroso com os filhos. Mas não era injusto, e sua sisudez era na verdade, além de um produto do tempo, expressão de seu cuidado paterno e do desejo de fazer com que seus filhos se tornassem pessoas boas. Sei que ele gostava de música sacra, e que vez ou outra era flagrado em casa cantarolando alguma peça de música vocal que aprendera quando fazia parte do coral do Seminário São José.

 São características que, para um leitor desavisado de outras regiões do Brasil, talvez possam parecer banais. Mas é preciso lembrar que elas se manifestaram num homem que era filho de um pequeno agricultor, que nascera e vivera numa pequena - ainda que agradável - cidade do sertão cearense (onde, apesar de um ou outro lampejo intelectual, a vida sempre foi um tanto prosaica). Sinto empatia por sua posição por também ter vivido, ainda jovem, um drama talvez parecido com o seu: sentia um inexplicável interesse pelos livros e pela cultura que, infelizmente, não era compartilhado por muitas das pessoas com quem eu podia conversar. Talvez seja um mero devaneio, porém sou  até capaz de imaginá-lo debruçado, nas horas livres de sua rotina de funcionário público provinciano, sobre algum clássico da literatura  universal. Talvez ele sentisse uma solitária satisfação nesses momentos...

Segundo meu pai, os filhos mais jovens de Zé Siebra conheceram um homem diferente (en passant: ele e minha avó tiveram 11 filhos). Já próximo à velhice, ele se tornou menos rígido, e talvez tenha se deixado absorver mais pela vida social cratense - o que na prática devia significar um cotidiano um pouco árido... Mas quero crer que até o fim de sua vida ele preservou sua inclinação intelectual, e que esse interesse pelas letras foi um elemento que acrescentou ainda mais riqueza a uma vida que já era digna pelo papel que ele exerceu como dedicado pai e como empenhado funcionário público.

 Insisti muito para que meu pai pedisse ao meu tio Fifico que me emprestasse o maço de textos de meu avô. Ele gentilmente me entregou essa preciosa herança da família e eu, em agradecimento, pretendo aos poucos transcrevê-los e publicá-los neste blog. Faço isso sem grandes pretensões. Quero apenas preservar um pouco mais a memória de meu avô, e também apresentar um pouco melhor esse seu lado pouco explorado aos seus descendentes (meus familiares). O leitor casual que se sentir atraído por essas linhas precisa lembrar que se tratam de textos escritos num contexto geográfico e histórico muito específico - e cujo valor, portanto, está indissociavelmente ligado à realidade cultural cratense e ao universo afetivo da família Siebra.

Para mim, esse também será um estimulante exercício de viagem no tempo: uma forma de me aproximar de uma época e de uma cidade que eu não vivi, mas sobre os quais ouvi muito falar.


Eduardo Siebra,
Brasília, 29 de agosto de 2014. 


Observação: Responsabilizo-me pelos erros de digitação que possam ser encontrados nos textos deste blog.