Explicação preliminar: Transcrevendo novos textos de meu avô, descobri que o artigo
"Entrevista com um Delegado" é na verdade o fragmento de uma série mais ampla, chamada "Casca e Miolo".
Para minha surpresa, descobri que se trata de uma curiosa tentativa de ficção científica sertaneja, em que um autor anônimo usa o mirabolante
registrador de consciência para averiguar se aquilo que se diz corresponde àquilo que se pensa. Usando um avião a jato, ele vai de cidade em cidade entrevistando figuras públicas (um juiz, um prefeito, um advogado, um bancário, um comerciante, um dentista e um vigário) com o objetivo de averiguar o nível moral de nossa gente.
Como era comum nos textos de meu avô, o objetivo final era transmitir uma mensagem edificante. Neste caso, como se trata de uma crítica social a um Brasil em que a falta de caráter de seus homens públicos em muito prejudicava os interesses coletivos, acho que o tom é bastante apropriado. Diria até que a mensagem continua atual, apesar de nossas instituições certamente terem mudado desde aquela época. Como o autor conseguiu preservar certa leveza e senso de humor na narrativa, a leitura do texto é rápida e agradável.
Pretendo em breve transcrever toda a série. O quadro que aos poucos for se delineando talvez seja uma boa introdução ao que era o interior do Ceará no fim da década de 50 do século passado.
José Siebra de Oliveira, agosto de 1958
(publicado no Periódico da AABB do Crato)
Acentua-se, dia a dia, entre os homens, a
dualidade das expressões do seu interior e do seu exterior.
Uma minoria mantém
uniformes e paralelas as manifestações intrínsecas e extrínsecas de seu
"eu".
Na primeira classe,
estão os cordeiros com alma de lobo. Na segunda, os coerentes ou bons, interna
e externamente, ou igualmente maus.
Para análise desta
situação, construímos o nosso registrador
de consciência, e com ele vamos trabalhar um pouco, sintonizando alguns
estados d'alma. Entrevistaremos um juiz, um prefeito, um advogado, um bancário,
um comerciante, um dentista e um vigário.
Ressaltamos, com
absoluta sinceridade, que não é intenção nossa atingir ou vulnerar qualquer
cidadão vivo ou morto, mas apresentar, com imparcialidade e realismo, o comum
das atitudes humanas, de modo particular no Brasil.
Declaramos, pois,
que qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido uma inevitável
coincidência.
Acionemos o nosso
avião a jato...
Tum... um... um...
um... um... um... ummmmmmmmmmmmmm...
Cuidado! Se
atingirmos a estratosfera, nos transformaremos em poeira dos espaços... Afinal
não estamos preparados para uma viagem à lua.
Baixemos de
mergulho...
Tchum... um... um...
um... ummmmmmmmm...
Aqui estamos no
interior do Nordeste. Uma cidade do sertão.
Seu nome não
interessa. Tudo isto é Brasil, esta enorme panela de baião de dois, esta grande
tigela de café de leite, esta imensa lagoa de três sangues, este lago de águas
turvas. Onde se mete a mão, a piranha morde. Onde se mergulha, "o jacaré
abraça" ou o tubarão devora.
Vejamos esta praça.
Olhem a placa! "Praça da liberdade". Nela está a cadeia pública, a
delegacia de polícia e a Chefia da Guarda Municipal.
Desçamos nesta rua.
Vejam! "Rua da Concórdia". Duas mulheres, agarradas pelos cabelos,
lutam com ferocidade de loucas.
Observem aquela
legenda do obelisco! "Jardim dos Doutores". Dois burros estão
devorando a grama.
Nossa curiosidade
nos leva a falar para um engraxate, sentado à porta do "Bar Novo".
– Onde o fiscal desta praça?
O mocinho foi
ligeiro com a resposta, sem erguer a cabeça, encolhendo uma perna e metendo a
escova no seu caixote...
– Está trabalhando
na fazenda do coronel, o nosso Prefeito. Faz uma semana.
– E estes burros?
São do Juiz, mas se
entra outro aí leva tiro.
E o rapaz, estirando
o beiço, foi dizendo:
– Olhem, aí vem ele.
– O que? Outro
burro?
E numa virada rápida
de meia volta, encontramo-nos, cara a cara, com um senhor de esbelto porte,
robusto, jovial, cavalheiresco, que ligeiro nos falou:
– Olá, senhores! São
porventura do planeta Marte?
– Não, cidadão.
Apenas turistas. Estamos aqui admirando a sua terra e o seu povo. Com quem
temos a honra de falar?
– Sou o Juiz da
cidade... Cavalheiros, não se escandalizem com o nome da nossa pracinha. O povo
assim o quis. É que, toda noite, nos reunimos, aqui, eu, o advogado, o médico e
o dentista, para um ligeiro "bate-papo".
Agora, ao
trabalho... liguemos o registrador... observemos o que expressa a boca (B) do
Juiz e a sua consciência (C).
Olhem a fita
magnética:
– Sr. Juiz, V.S.
deve ser muito preparado. Bem o indica a sua fachada...
– B: ~ Modéstia à
parte, estudei muito. Graças, não tanto à minha inteligência, mas aos meus
esforços, sempre consegui, não o primeiro lugar, mas um dos primeiros da turma.
– C: ~ Sempre passei
por pescas, pistolões, presentes aos professores venais, quando os reconhecia
como tais, ou, algumas vezes, à amante de um deles, a qual agiu também no caso.
– Então, facilmente
chegou V.S. a ser Juiz?
– B: ~ Sim... É
claro... Os meus méritos conquistaram o Tribunal.
– C: ~ Fui nomeado
por força de uma intervenção do Governador do Estado, eleito pelo NPC, o nosso
partido.
– Como Juiz, V.S.
tem demonstrado preferências partidárias?
– B: ~ Nunca. Os
meus atos são sempre fundamentados na razão e nas leis naturais, na legislação
vigente, e guiados pelos princípios de equidade e justiça.
– C: ~ Sempre
defendo, o quanto posso, o interesse do meu partido. Fora disto, somente quando
a vantagem é grande... Se o criminoso levado ao Tribunal do Júri o é pelo meu
partido, escolho os jurados de conformidade com as circunstâncias, ou para
soltá-lo ou para condená-lo, sem vistas ao crime. Na época das eleições, ando
por baixo d'água. Meus esforços jamais se perderam em defesa dos meus interesses
partidários.
– Queremos crer, Sr.
Juiz, que, em nosso Brasil, todos os juízes são, como V.S., sinceros, justos,
esclarecidos.
– B: ~ Nem todos. Há
exceções. Os venais e os politiqueiros.
– C: ~ A maioria dos
juízes, no Brasil, parece realmente ser de mim diferente. São honestos.
Grande parte, entretanto, é do meu quilate. Onde a causa? Ignoro.
– V.S., como estamos
observando, tinha realmente vocação para as funções que exerce...
– B: - Sim... Sim...
Sempre foi o meu maior desejo e grande vontade do meu pai que eu abraçasse a
advocacia e viesse a ser o que hoje sou.
– C: ~ A minha vontade
era seguir agronomia. Tinha loucura pelo cultivo e bom aproveitamento dos
campos. Sonhava com um Brasil próspero, produzindo muito. Infelizmente o meio
corrompeu o meu idealismo. Cheguei depois a me convencer de que, no Nordeste,
agrônomo não encontra trabalho, salvo quando vai cultivar o próprio terreno, ou
quando consegue colocação na chefia do Serviço Florestal ou de algum Campo de
Fruticultura do Governo. Foi assim que, contra a minha aspiração, estudei
advocacia, pois são mais abundantes os campos de exploração neste sentido,
quando se tem alguma inteligência.
– Estamos muito
gratos, Sr. Juiz. O nosso abraço, e até...
E agora voltemos em
nosso avião, pensando neste imenso Brasil, tão cheio destes desencontros,
destas situações que geram o crime e a infelicidade, frutos de uma educação mal
orientada e de um Governo desinteressado dos problemas fundamentais da
nacionalidade.
Assim é que, desta
forma, vemos homens voando como as andorinhas, que pousam nos pináculos dos
grandes edifícios e nas copas das árvores, quando, pelo que intrinsecamente
são, deviam andar rasteiros como as emas e subir apenas à altura do voo das
galinhas.