quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Dona Cotinha










José Siebra de Oliveira, Setembro de 1964
(Publicado no Periódico da AABB do Crato, ano IX, num. 19)

            Quem esta cobiçada fêmea?
            Por ela, os machos lascivos lutam e se matam. Cândida Afrodite, atrai como Frinéia. Pura Inês dos cristãos, corrompe como Messalina. Pela posição de conquistá-la, os homens se debatem. Batalhas ardilosas, difamadoras, sanguinárias.
Do seu sólio ansiosa, espera a linda Dulcinéia os braços do vencedor, para melhor servir ao seu povo. Almeja o eleito porque ama a multidão. Quer o bem comum. Nestas batalhas, com algumas exceções, sempre vencem os voluptuosos. Os sábios, os prudentes, os honestos não lutam com filhos de lobos ou raposas. Isso é mitologia.
Alguém venceu. Eis o homem! Eis o eleito!
Arrancou-a do palácio, que é o do Tesouro, e, embevecido, esfomeado, ganancioso, carrega-a, como sua, para usá-la.
Ela se contorce, reboleia e grita. São lágrimas de papel velho e amarrotado como o cruzeiro do Brasil, pelo qual anseiam santos e pecadores.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Casca e Miolo IV - Conversa com um Médico



José Siebra de Oliveira, março de 1959 (publicado no periódico da AABB do Crato)

            Depois de complicado e longo processo burocrático, volta às nossas mãos o registrador de consciência.
            Pousamos no mais importante aeroporto do planalto central, vencemos, de táxi, os quinze quilômetros que dele nos separam, e aqui estamos, no vigésimo andar do EDIFÍCIO IPIRANGA.
            Há mais de uma hora, o renomado clínico atende a um cliente, o último dos oito receitados, quatro pela manhã, quatro à tarde.
            São cinco horas e cinquenta minutos...
            Abre-se a porta do consultório e recebemos ordem de ingresso.
            Vê-se, sobre a secretária, volumoso livro em que são anotados sintomas, doenças, antecedentes, remédios indicados e dados biográficos dos pacientes.
Cada receita custa quinhentos cruzeiros...
O nosso aparelho já funciona...
Fazemos as saudações protocolares e, depois de nos termos dado a conhecer reciprocamente, atiramos a primeira pedra...
– V. S. é muito procurado nesta capital.
– B)[1] Não sei qual o motivo. Muitos colegas me superam.
– C)[2] Trabalho honestamente. Não me esqueço dos livros. Fiz ótimo curso. Desprezava as brincadeiras prejudiciais. Consegui sempre boas notas. Jamais me servi de pistolões, presentes a professores e outros processos degradantes que, longe de me fazerem um médico, me transformariam num grande impostor.
– V. S. sempre quis ser médico?
– B) Desde criança... desejava concorrer para a felicidade do povo.
– C) Sempre desejei servir aos semelhantes, sobretudo aos humildes. Para isto tenho dois dias, na semana, de receitas gratuitas.
– V. S. demora bastante com cada cliente?
– B) Amo o trabalho honesto.
– C) Considero furto receber dinheiro sem analisar o estado do paciente. A observação deve ser completa. Muitas vezes, enfraquece uma parte do organismo, consequência de distúrbios em outros setores. Quando se evidencia um órgão doente de que não se acusa o paciente, não sendo da minha especialidade e competência, aconselho-o a procurar o médico indicado. De qualquer forma, faço exame geral. Somente assim posso realizar a missão que abracei.
– V. S. conhece incapazes na classe?
– B) Nunca observo a vida dos colegas. Penso, entretanto, que o governo devia ser mais rigoroso na seleção daqueles a cujas mãos vão ser confiadas muitas vidas.
– C) Conheço diversos, Brasil afora, que fazem do consultório uma bodega. Surge um cliente atacado de gestão pulmonar... Eles, sem uso de aparelhos, indicam remédios para dores intestinais. Outros até prolongam a doença, quando descobrem que o paciente é rico. Incompetentes outros, pelo curso que fizeram, pelos métodos vergonhosos que empregam, pela ignorância em questão de diagnósticos, tornam-se verdadeiros criminosos. E o que é pior... ninguém pode provar nem combater.
– Que julga V.S. dos que provocam o aborto?
– B) Sobre este ponto, em particular ou de público, qualquer que seja o processo de aniquilamento da vida, sempre estarei em luta contra os que assim agem. Considero o direito de nascer muito sagrado. Aqueles que assim procedem são tão criminosos como os pistoleiros dos sertões. A sua licença devia ser cassada, sem possibilidades de retorno à profissão. Para mim, é o caso objeto de Tribunal do Júri. Infelizmente o mundo ainda não compreender isto e não quer considerar como homem aquele que ainda não viu a luz.
– C) (Idênticas impressões observam-se no registrador).
– Muito obrigado, doutor. Que Deus dê ao Brasil muitos médicos da sua qualidade. Antes de ser um grande médico, V. S. é um grande homem.
O que ainda nos conforta é que são poucos os médicos de baixo quilate. Sempre têm eles o coração largo e cheio de amor e bondade, trabalhando com honestidade e abnegação, para que vivam os brasileiros.

NOTA: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido uma inevitável coincidência.


[1] Boca. (N. do editor)
[2] Consciência (N. do Editor)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Casca e Miolo I - Entrevistando um Juiz



Explicação preliminar: Transcrevendo novos textos de meu avô, descobri que o artigo "Entrevista com um Delegado" é na verdade o fragmento de uma série mais ampla, chamada "Casca e Miolo".
 Para minha surpresa, descobri que se trata de uma curiosa tentativa de ficção científica sertaneja, em que um autor anônimo usa o mirabolante registrador de consciência para averiguar se aquilo que se diz corresponde àquilo que se pensa. Usando um avião a jato, ele vai de cidade em cidade entrevistando figuras públicas (um juiz, um prefeito, um advogado, um bancário, um comerciante, um dentista e um vigário) com o objetivo de averiguar o nível moral de nossa gente.
 Como era comum nos textos de meu avô, o objetivo final era transmitir uma mensagem edificante. Neste caso, como se trata de uma crítica social a um Brasil em que a falta de caráter de seus homens públicos em muito prejudicava os interesses coletivos, acho que o tom é bastante apropriado. Diria até que a mensagem continua atual, apesar de nossas instituições certamente terem mudado desde aquela época.  Como o autor conseguiu preservar certa leveza e senso de humor na narrativa, a leitura do texto é rápida e agradável. 
 Pretendo em breve transcrever toda a série. O quadro que aos poucos for se delineando talvez seja uma boa introdução ao que era o interior do Ceará no fim da década de 50 do século passado.






José Siebra de Oliveira, agosto de 1958
(publicado no Periódico da AABB do Crato)

         Acentua-se, dia a dia, entre os homens, a dualidade das expressões do seu interior e do seu exterior.
          Uma minoria mantém uniformes e paralelas as manifestações intrínsecas e extrínsecas de seu "eu".
         Na primeira classe, estão os cordeiros com alma de lobo. Na segunda, os coerentes ou bons, interna e externamente, ou igualmente maus.
           Para análise desta situação, construímos o nosso registrador de consciência, e com ele vamos trabalhar um pouco, sintonizando alguns estados d'alma. Entrevistaremos um juiz, um prefeito, um advogado, um bancário, um comerciante, um dentista e um vigário.
             Ressaltamos, com absoluta sinceridade, que não é intenção nossa atingir ou vulnerar qualquer cidadão vivo ou morto, mas apresentar, com imparcialidade e realismo, o comum das atitudes humanas, de modo particular no Brasil.
          Declaramos, pois, que qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido uma inevitável coincidência.
              Acionemos o nosso avião a jato...
              Tum... um... um... um... um... um... ummmmmmmmmmmmmm...
             Cuidado! Se atingirmos a estratosfera, nos transformaremos em poeira dos espaços... Afinal não estamos preparados para uma viagem à lua.
              Baixemos de mergulho...
               Tchum... um... um... um... ummmmmmmmm...
               Aqui estamos no interior do Nordeste. Uma cidade do sertão.
               Seu nome não interessa. Tudo isto é Brasil, esta enorme panela de baião de dois, esta grande tigela de café de leite, esta imensa lagoa de três sangues, este lago de águas turvas. Onde se mete a mão, a piranha morde. Onde se mergulha, "o jacaré abraça" ou o tubarão devora.
           Vejamos esta praça. Olhem a placa! "Praça da liberdade". Nela está a cadeia pública, a delegacia de polícia e a Chefia da Guarda Municipal.
               Desçamos nesta rua. Vejam! "Rua da Concórdia". Duas mulheres, agarradas pelos cabelos, lutam com ferocidade de loucas.
               Observem aquela legenda do obelisco! "Jardim dos Doutores". Dois burros estão devorando a grama.
               Nossa curiosidade nos leva a falar para um engraxate, sentado à porta do "Bar Novo".
                – Onde o fiscal desta praça?
             O mocinho foi ligeiro com a resposta, sem erguer a cabeça, encolhendo uma perna e metendo a escova no seu caixote...
               – Está trabalhando na fazenda do coronel, o nosso Prefeito. Faz uma semana.
               – E estes burros?
               São do Juiz, mas se entra outro aí leva tiro.
               E o rapaz, estirando o beiço, foi dizendo:
               – Olhem, aí vem ele.
               – O que? Outro burro?
               E numa virada rápida de meia volta, encontramo-nos, cara a cara, com um senhor de esbelto porte, robusto, jovial, cavalheiresco, que ligeiro nos falou:
               – Olá, senhores! São porventura do planeta Marte?
            – Não, cidadão. Apenas turistas. Estamos aqui admirando a sua terra e o seu povo. Com quem temos a honra de falar?
               – Sou o Juiz da cidade... Cavalheiros, não se escandalizem com o nome da nossa pracinha. O povo assim o quis. É que, toda noite, nos reunimos, aqui, eu, o advogado, o médico e o dentista, para um ligeiro "bate-papo".
               Agora, ao trabalho... liguemos o registrador... observemos o que expressa a boca (B) do Juiz e a sua consciência (C).
               Olhem a fita magnética:
               – Sr. Juiz, V.S. deve ser muito preparado. Bem o indica a sua fachada...
             – B: ~ Modéstia à parte, estudei muito. Graças, não tanto à minha inteligência, mas aos meus esforços, sempre consegui, não o primeiro lugar, mas um dos primeiros da turma.
          – C: ~ Sempre passei por pescas, pistolões, presentes aos professores venais, quando os reconhecia como tais, ou, algumas vezes, à amante de um deles, a qual agiu também no caso.
               – Então, facilmente chegou V.S. a ser Juiz?
               – B: ~ Sim... É claro... Os meus méritos conquistaram o Tribunal.
               – C: ~ Fui nomeado por força de uma intervenção do Governador do Estado, eleito pelo NPC, o nosso partido.
               – Como Juiz, V.S. tem demonstrado preferências partidárias?
               – B: ~ Nunca. Os meus atos são sempre fundamentados na razão e nas leis naturais, na legislação vigente, e guiados pelos princípios de equidade e justiça.
               – C: ~ Sempre defendo, o quanto posso, o interesse do meu partido. Fora disto, somente quando a vantagem é grande... Se o criminoso levado ao Tribunal do Júri o é pelo meu partido, escolho os jurados de conformidade com as circunstâncias, ou para soltá-lo ou para condená-lo, sem vistas ao crime. Na época das eleições, ando por baixo d'água. Meus esforços jamais se perderam em defesa dos meus interesses partidários.
               – Queremos crer, Sr. Juiz, que, em nosso Brasil, todos os juízes são, como V.S., sinceros, justos, esclarecidos.
               – B: ~ Nem todos. Há exceções. Os venais e os politiqueiros.
              – C: ~ A maioria dos juízes, no Brasil, parece realmente ser de mim diferente. São honestos. Grande parte, entretanto, é do meu quilate. Onde a causa? Ignoro.
               – V.S., como estamos observando, tinha realmente vocação para as funções que exerce...
               – B: - Sim... Sim... Sempre foi o meu maior desejo e grande vontade do meu pai que eu abraçasse a advocacia e viesse a ser o que hoje sou.
          C: ~ A minha vontade era seguir agronomia. Tinha loucura pelo cultivo e bom aproveitamento dos campos. Sonhava com um Brasil próspero, produzindo muito. Infelizmente o meio corrompeu o meu idealismo. Cheguei depois a me convencer de que, no Nordeste, agrônomo não encontra trabalho, salvo quando vai cultivar o próprio terreno, ou quando consegue colocação na chefia do Serviço Florestal ou de algum Campo de Fruticultura do Governo. Foi assim que, contra a minha aspiração, estudei advocacia, pois são mais abundantes os campos de exploração neste sentido, quando se tem alguma inteligência.
               – Estamos muito gratos, Sr. Juiz. O nosso abraço, e até...
          E agora voltemos em nosso avião, pensando neste imenso Brasil, tão cheio destes desencontros, destas situações que geram o crime e a infelicidade, frutos de uma educação mal orientada e de um Governo desinteressado dos problemas fundamentais da nacionalidade.
               Assim é que, desta forma, vemos homens voando como as andorinhas, que pousam nos pináculos dos grandes edifícios e nas copas das árvores, quando, pelo que intrinsecamente são, deviam andar rasteiros como as emas e subir apenas à altura do voo das galinhas.